1 de jun. de 2012

Cultura, trabalho e prazer

Por Thais Polimeni

Trabalhar com cultura é extremamente prazeroso e recompensador. Falo isso com a propriedade de quem já trabalhou em diversos ramos do mundo corporativo, e que sempre foi apaixonada por arte e cultura.
Há quase um ano, decidi me dedicar totalmente à área cultural, criando a Cult Cultura Marketing (conheça aqui), ao lado de meu amigo e sócio, Leonardo Cássio. Começamos com um blog, sem muita pretensão. As oportunidades foram aparecendo naturalmente e, então, surgiu a Cult Cultura Marketing.
Sair do mundo corporativo e iniciar uma atividade na área cultural não é nada fácil, principalmente de explicar sua atitude para outras pessoas, mesmo se o seu trabalho for com marketing ou produção cultural.
O mercado cultural é muitas vezes associado ao lazer e ao entretenimento, fazendo com que, em alguns casos, a sociedade não considere que os profissionais dessas áreas sejam realmente trabalhadores. Um exemplo básico é aquele famoso diálogo:
— Ela trabalha com o quê?
— Ela é atriz.
— Mas só atriz? Ela não trabalha?
Como se o ato de estudar o texto, construir a personagem, ensaiar e se apresentar não fosse digno de ser chamado de trabalho.
Neste primeiro texto sobre marketing cultural, aqui no Jornalirismo, vou falar sobre a relação entre cultura e mundo do trabalho, mostrando as modificações em todas as esferas do “trabalho” e as consequentes oportunidades na área cultural.

Uma de suas origens, “labour”, carregava um sentido de “dor” ou “atividade pesada”. Segundo Raymond Williams, no capítulo “Trabalho [work]”, de seu livroPalavras-chave – um vocabulário de cultura e sociedade, a palavra “trabalho” perdeu esse sentido de atividade árdua, para adquirir um significado mais geral de “atividade” e “mão de obra”.
Deve-se salientar que não se trata de qualquer atividade, mas sim, de todas que são remuneradas, aquela em que o trabalhador entra com sua mão de obra e o empregador o recompensa com algum tipo de remuneração. Assim, partindo desse pressuposto, o lazer (tempo de não-trabalho) só pode ser usufruído graças ao tempo no trabalho.
Mais lazer
O sociólogo italiano Domenico De Masi, criador do conceito do “ócio criativo”, defende que, com uma população em crescimento, não haverá emprego para todos se continuarmos com o atual modelo de contrato de trabalho. Sua sugestão é que se diminuam as horas de trabalho diárias, abrindo, dessa forma, mais oportunidades no mercado. Em uma de suas entrevistas, no programa “Roda Viva”, da TV Cultura, um dos entrevistadores lhe pergunta: “E as demais horas? O que as pessoas farão?”. “Lazer”, responde De Masi. A sociedade (ou o governo) tem que investir no lazer, em atividades culturais, que, além de ocupar o “tempo livre” do trabalhador, também gerarão mais postos de trabalho e movimentarão a economia. Nesse “tempo livre”, as pessoas terão a oportunidade de criar e desenvolver novas ideias, contribuindo para a evolução da sociedade.
 Ainda discursando sobre “trabalho”, Domenico De Masi comenta que o atual contrato de trabalho, muito comum no Brasil, com horário fixo e pagamento pelas horas trabalhadas, não condiz com as funções exercidas por muitos profissionais. Deu o exemplo de um publicitário que tinha que criar uma campanha. O profissional ficou na agência no horário estipulado pelo contrato, mas não conseguiu criar nenhum slogan, nenhuma assinatura, nenhum roteiro. Ao chegar a casa, brincou com os filhos, conversou com a esposa, assistiu ao seu programa favorito na TV e foi dormir. No meio da noite, esse publicitário acordou com uma ideia genial para a campanha. “E, então, ele será remunerado por esse momento da madrugada, em que ele teve a ideia?”, provoca De Masi.
O filósofo francês Yvez Schwartz diz que estamos vivendo em “um novo ritmo de mudança, com tudo o que se pode passar em torno dos meios de comunicação a distância, daquilo que se chama de nova economia, internet”. A internet, além de influenciar no trabalho em geral, terá uma atuação muito grande na área da comunicação, devido ao surgimento de novas mídias e da relação do receptor com o meio pelo qual ele recebe a mensagem.

Novos grupos
Desse processo, surgiram novas formas de trabalho, como os “grupos de projetos”, exemplo dado por Schwartz. Esses grupos demandarão alguns pré-requisitos não tão importantes anteriormente, como o espírito de cooperação, bom relacionamento interpessoal e capacidade de lidar com diferenças. Na área cultural, esses grupos são de extrema importância, pois a maior parte das atividades culturais é concebida e desenvolvida por um período determinado (temporada) que envolve profissionais de diversas áreas, exigindo que se formem grupos de projetos para sua realização. Além disso, uma atividade muito comum nessa área é a captação de recursos: frequentemente, empresas e governo lançam editais para patrocinar atividades culturais. Para participar da seleção, o gestor cultural deve formatar um projeto. Mesmo antes que o projeto seja aprovado, a formatação dele exigirá que o gestor entre em contato com todos os profissionais envolvidos, a fim de elaborar o orçamento, fazer as cartas de confirmação de participação, arte gráfica, seleção de fotos etc., o que comprova os pré-requisitos citados no início deste parágrafo.
Nesses grupos de projetos, uma forma de contratação muito comum é a terceirização. Essa é uma mudança que está muito presente na atualidade, em diversas empresas de diferentes segmentos.
Falando agora sobre a cultura propriamente dita, esse conceito está fortemente ligado às relações de poder da sociedade. Ao analisar a cultura de cada comunidade, descobrem-se vários aspectos que não poderiam ser identificados sem ela. A preocupação com o estudo da cultura iniciou-se com as classes ditas mais altas, que objetivavam ter um controle sobre as classes ditas inferiores. Um exemplo prático dessa relação de poder é o fato de haver, até hoje, uma separação entre “alta cultura” e “baixa cultura”.
Preconceito
A “alta cultura” reuniria as atividades culturais frequentadas pela classe de alto poder aquisitivo, como a música erudita, as óperas e clássicos teatrais, pois elas requerem um nível de estudo razoável para o bom entendimento do espetáculo. A “baixa cultura”, por sua vez, somaria as atividades culturais digamos mais acessíveis, cujo público é a classe mais baixa, com baixo nível de escolaridade e pouca instrução.
Os jornais e revistas difundem o termo “cultura” com foco em produções e reproduções artísticas, como espetáculos de música, dança, teatro, exposições de arte e lançamento de livros.
 Há uma definição sobre cultura bem completa, que congrega todos esses exemplos:
 “Cultura é toda produção ou manifestação voluntária, individual ou coletiva, que vise, com sua comunicação, à ampliação do conhecimento (racional ou sensível) através de uma elaboração artística, de um pensamento ou de uma pesquisa científica”. Martin Cezar Feijó, em O que é Política Cultural.
 Cultura, portanto, é algo muito abrangente e pode ser compreensível o fato de tentar separá-la em segmentos/tipo, como “alta cultura”, “baixa cultura”, “cultura popular” etc.
No Brasil, o termo ainda carrega muito preconceito. Quem diz que gosta de “cultura” acaba sendo estereotipado como uma pessoa bem instruída, com gosto refinado. Porém, de acordo com esses estudos, percebemos que não há ser humano que possa viver alienado à cultura. Conforme explicado pelo antropólogo Raymond Williams, a cultura representa um modo particular de vida, seja em um grupo pequeno (como a comunidade indígena em um determinado local da Amazônia), seja em uma sociedade maior (a cultura norte-americana, por exemplo), ou seja até mesmo em um período histórico (a cultura dos vassalos durante o período feudal). A cultura faz parte do indivíduo e do grupo em que está inserido.
Relacionando, agora, a cultura com o mundo do trabalho, concluímos que, como os profissionais da cultura trabalham para expor suas ideias e entreter o público durante as horas de lazer dele, geralmente são vistos como quem não trabalha. “Fazer um show não é trabalhar, é se divertir”, muitos dizem. Isso é compreensível devido à origem da palavra “trabalho”, vista anteriormente. Mas, nos dias de hoje, o trabalho com cultura pode ser facilmente relacionado aos conceitos apresentados por Yves Schwartz, em resumo: 
• A cultura faz parte do setor de serviços: “(...) o que prolifera (…) é chamado de setor de serviços. Isso vai modificar muita coisa na vida social”. Além de modificar muita coisa por fazer parte do setor de serviços, os profissionais da área cultural também modificarão a sociedade de outras formas, como através da divulgação de conhecimento e cultura.

• Na maior parte dos casos, quem trabalha na área cultural trabalha por projeto, seja um artista contratado para uma temporada de shows, seja um gestor cultural que formata projetos para a Lei Rouanet, seja um contador que fará o controle de gastos e despesas do projeto realizado.

• Se um artista faz algum espetáculo e diverte seu público, não quer dizer que ele esteja se divertindo da mesma forma. Ele pode, sim, se divertir, mas ele ainda carrega a responsabilidade de entreter quem lhe assiste. Portanto, não se deve julgar se um trabalho é interessante ou não sem associá-lo ao trabalhador.

• “Cada ser humano no trabalho tenta (…) recompor, em parte, o meio de trabalho em função do que ele é, do que ele desejaria que fosse o universo que o circunda”, lembra Schwartz. A área cultural reúne artistas das mais diversas áreas, sejam profissionais, sejam amadores. Como vimos, é difícil haver algum artista que tenha sido obrigado a escolher sua profissão. Quem trabalha com cultura trabalha com o objetivo de propagar uma ideia ou apresentar sua arte. O profissional da cultura, seja ele o gestor cultural, seja ele o próprio artista, acredita no seu produto e recompõe em sua totalidade o que deseja que fosse o universo.

• Os profissionais da área cultural são interdependentes. Um sabe que precisa do outro e esse conhecimento gera um espírito de cooperação e uma troca muito grande. Cada um tem sua competência (aquele termo enigmático citado por Schwartz) e reconhece a competência do outro, o que geralmente promove um bom relacionamento com a equipe.
Constante evolução
Podemos incluir também a ideia do sociólogo Domenico De Masi, em seu livroO ócio criativo, em que sugere um novo modelo de trabalho, baseado na simultaneidade entre trabalho, estudo e lazer. Essa premissa vai ao encontro do trabalho na área cultural, cujos profissionais trabalham (trabalho), participam das atividades culturais (lazer) e não param de aprender (estudo), visto que diariamente participa-se sempre de projeto com abordagens diferentes e novas pessoas.
Finalizando, o trabalho na área cultural deve ser considerado um trabalho, sim, principalmente devido às mutações que essa palavra vem sofrendo ao longo de sua existência.
Acho que agora você tem argumentos de sobra para convencer as pessoas de que você, de fato, trabalha, não é? E, além disso, contribui para o crescimento da sociedade. Se estiver a fim de trabalhar no mercado cultural, vá em frente. É uma área em grande expansão. Falaremos mais sobre isso no próximo texto!

*Thais Polimeni é graduada em publicidade e propaganda pela Universidade Mackenzie e, com seu sócio, Leonardo Cássio, dirige a Cult Cultura Marketing, incubada pela mesma universidade. Está no último semestre de pós-graduação em “Gestão da Comunicação: Políticas, Educação e Cultura” na Universidade de São Paulo e trabalha numa monografia sobre a construção de um portal de incentivo à cultura.

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